À imprescindível e doce Conceição

A Conceição Matos é uma dessas pessoas imprescindíveis, um ser humano fantástico, de uma doçura e humanismo infinito.

De cada vez que nos encontramos, de todas as vezes que estamos juntas, sempre que nos cruzamos, reconfirmo que o seu carinho pelos outros é infindável e que a sua força de viver e lutar é invencível.

Reconfirmo que esta mulher é feita de uma constante coragem e determinação imensa, e questiono-me como é possível alguém ter sobrevivido a tanta violência e ter um olhar tão doce e límpido.

Nasceu em S. Pedro do Sul, numa família de sete irmãos e pai operário. Com três anos veio para a cintura industrial de Lisboa e, quando terminou a quarta classe, “agarrou-se ao que aparecia”: andou na costura, lavou garrafas numa fábrica de pirolitos, trabalhou numa fábrica de cortiça e, por uns tempos, esteve na CUF, com os irmãos e o pai. No Barreiro, a dureza da miséria e a vida dos operários terão sido determinantes para perceber a importância e a urgência da luta antifascista.

Por influência do irmão, que viria a ser preso quando ela tinha 17 anos, aderiu ao MUD Juvenil. Pintou nos muros e paredes “Não à guerra colonial e à reabertura do Tarrafal”, distribuiu panfletos e apelou à luta.

O noivo foi preso e transferido para o forte de Peniche. Todas as semanas, durante cinco anos, tentou vê-lo, mas foi proibida de o visitar porque não estavam formalmente casados. Em 1961, finalmente, casou com ele no forte de Peniche.

No dia do casamento, não tiveram direito a festa nem a fotografias, mas o amor era (é) maior que todas as dificuldades.

Em 1965, a PIDE arrombou a porta de sua casa e foi presa pela primeira vez, sujeita a tortura, horrivelmente brutal e humilhante. Na Rua António Maria Cardoso, na sede da PIDE em Lisboa, chegou a estar 17 dias numa cela, isolada, sem nada, riscando com a unha num armário, por cada dia que passava. Durante três dias e três noites, resistiu à tortura do sono, espancamentos, obrigada a defecar e urinar no chão e a limpar tudo com a sua própria roupa. Não falou. Levaram-na para o forte de Caxias. Os camaradas perguntaram-lhe e disse que não tinha falado. Como resposta, teve: “Coragem hoje, abraços amanhã”.

Regressou à sede da PIDE, novamente torturada, completamente nua, obrigada a limpar a menstruação com a própria roupa, provando que até a tortura bate mais forte nas mulheres e operárias. Zeca escreveu-lhe um poema, ofereceu-lhe o texto por si manuscrito, onde diretamente a homenageia e responsabiliza a PIDE: “Mas eles, Conceição, vão / Lamber as botas / Comer à mão / Dum novo Pina Manique / Com outra lábia / Com outro tique / Tem quatro letras apenas / Mas outro nome lhe dão / Nesta Fortaleza antiga / Só não muda a guarnição”.

Resistiu. Saiu da prisão, prosseguiu a luta, voltou a ser presa em 1968 e foi cruelmente torturada. Resistiu novamente. Já em liberdade, integrou a Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos, o movimento da oposição e o movimento de mulheres. Em 1973, volta à clandestinidade com o seu companheiro de sempre, Domingos. Quando veio o 25 de Abril de 1974 estavam em França. Regressou a Portugal cinco dias mais tarde, com Álvaro Cunhal. Já em democracia, nunca se afastou das lutas pelos direitos das mulheres e das trabalhadoras e teve importantes tarefas no seu Partido de sempre.

Por estes dias, a propósito da comemoração do Dia Internacional da Mulher e da profunda atualidade das suas reivindicações originárias (trabalho igual, salário igual; 8 horas de trabalho; direito de voto), dei por mim a pensar em tantas mulheres do meu país, a quem tanto devo. Umas mais esquecidas, no anonimato das inúmeras lutas travadas, outras mais reconhecidas pelo seu percurso.

Pensei nelas, porque foi a coragem de tantas mulheres e homens, em gestos pequenos ou trabalhos arriscados, diários e solidários, motivados pela necessidade imprescindível de resistir, que conquistou a liberdade e a democracia. E porque a Conceição Matos é uma dessas pessoas imprescindíveis, um ser humano fantástico, de uma doçura e humanismo infinito. É uma mulher incrível que venceu tanta violência e crueldade, mas que partilha com todos um olhar tão doce e límpido, como o futuro que desejamos.

* Crónica publicada na VISÃO 1254, de 16 de março de 2017.

Comentários

  1. "Reconfirmo que esta mulher é feita de uma constante coragem e determinação imensa, e questiono-me como é possível alguém ter sobrevivido a tanta violência e ter um olhar tão doce e límpido." Este seu texto tocou-me muito. obrigado

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