Não é permitido assobiar para o ar


"Era noite e ouvi gritos e choro. Pensei escrever sobre isso, sobre a angústia de ouvir uma mulher a ser agredida, imaginar os filhos, e de como nestes dias, famílias inteiras sobrevivem em casas precárias, de pequenas dimensões e sem a privacidade necessária, crianças sujeitas a abusos, enfim, de como toda esta situação pode exponenciar a violência. Depois respirei fundo e fui à janela, percebi que pelo menos na minha rua, estava a ouvir sons que só existiam na minha cabeça. A violência também é silenciosa.

A situação de isolamento social e restrições que estamos a viver coloca muita coisa em causa e confronta-nos com tantas outras dimensões da nossa vida em comunidade: o nosso equilíbrio emocional; a evidência de precisarmos dos outros, dos que nos fazem e querem bem; do tempo de qualidade e da qualidade do tempo que temos enquanto famílias (de todos os tipos e formas); da qualidade do sono e dos tempos de descanso e lazer; da alimentação e do conforto das casas. 

Não ignoro elementos psicossociais, mas não dá para fugir ao óbvio, as sociedades onde vivemos traduzem modos de produção, de criação e distribuição da riqueza que influem direta e indiretamente em todas essas dimensões. Os horários e os ritmos de trabalho, o desgaste físico e psicológico, as contas para pagar e a ansiedade que isso gera quando o salário não estica até ao fim do mês, quando tanta gente neste país que só consegue ir ao dentista, pagar um funeral, comprar um eletrodoméstico essencial, se for a prestações.

Para que os serviços essenciais continuem a funcionar, as trabalhadoras da limpeza apanham o autocarro de madrugada em troca de um salário de trezentos e poucos euros, tantas sem lhes ter sido distribuído material desinfetante e de proteção, aliás, o mesmo acontece com os carteiros e distribuidores. Os trabalhadores dos call centers, em espaços que não respeitam distâncias mínimas, os milhares a recibos verdes que só conhecem a regra «no work, no pay», e que viram o seu trabalho adiado, mas não as contas para pagar. 

Esta crise não vai ser uma oportunidade, nunca são oportunidades iguais para todos, partimos de metas muito diferentes. Mas pode ser uma aprendizagem. Pode tornar mais claro que a existência de um Serviço Nacional de Saúde não é gasto, é investimento, e que os direitos e as condições de trabalho dos seus profissionais determina a qualidade dos cuidados assegurados aos utentes; que o papel da escola pública não é só formar mão de obra barata, mas sim cidadãos com capacidades e interesses vários, solidários, críticos e emancipados; que a segurança social pública é o cimento da solidariedade entre quem mais tem e quem mais precisa; que a existência de um banco público é uma ferramenta que um país não pode desperdiçar, e que menos Estado significa proteger só alguns, e o estado tem a obrigação de proteger todos.

Não dá para assobiar para o ar e virar a cara para não ver. Se assim for, quando tudo passar, o egoísmo, a ganância e a exploração continuarão a ser os valores que marcam o ritmo da vida e do mundo, e estes dias que estamos a viver, não sendo oportunidades, podem ser evidências para muitos, espero."

*Crónica publicada na Revista Visão, edição de 26 de março de 2020.

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