À Vitalina


"Alguma vez viu o sofrimento no rosto de uma mulher deitada num caixão?” Perguntou ela que tem nos olhos o peso de uma espera de 40 anos, de um levar para a frente sozinha, contando apenas consigo e as suas forças. Não teve resposta.


Vitalina Varela podia ser uma das muitas mulheres que cultivam horta nos separadores do IC19 e da CREL, podia ser uma das que apanham o autocarro da madrugada para limparem escritórios que faturam milhões mas lhes negam um contrato de trabalho efetivo, ou uma das que regressam no último comboio ou no último barco saídas de muitas horas em pé à frente do fogão e dos tachos. Podia ser uma das muitas que cuidam dos filhos dos outros sem terem tempo para os seus, das que carregam o mundo à cabeça e os filhos às costas, das que limpam estações de comboio com os filhos atrás porque não têm com quem os deixar, das que fazem um trabalho imprescindível, mas recebem como descartáveis.

Quando a vi pensei nelas, todas. Vitalina Varela, mulher que dá nome ao mais recente filme do realizador Pedro Costa, é um pouco de todas elas. Um pouco não, muito de todas elas, pelo menos foi isso que senti. Das que chegam sem papéis e sem trabalho, das que roubam horas ao sono uma vida inteira e se desdobram em dois e três trabalhos, e que não se romantize o cansaço e a exploração, porque o trabalho sai-lhes do corpo, e torna muito dura a sobrevivência. Numa recente entrevista no Festival de Cinema de Locarno, Vitalina diz que “quando uma pessoa emigra para um país de outro, já tem que sofrer muito”, imagine quando se chega para o funeral do marido que não vê há décadas, mal falando português, e sem apoio familiar. O filme e a sua história são muito mais do que tudo isto, e ao vê-la assim na tela, erguida como uma força da Natureza é como se visse e tivesse esperança de que todas as outras o conseguissem também.

O filme foi já exibido na Cova da Moura, bairro onde vive desde que chegou da Serra da Malagueta em Cabo Verde, e onde Pedro Costa a encontrou. E que feliz descoberta. Vitalina Varela é uma das que atam o lenço à cabeça e batucam para afastar o sofrimento, que conquistaram a sua liberdade e sabem da importância que isso tem, que reconhecem o esforço e o trabalho que exige a entrega a uma rodagem destas que durou 18 meses.

O filme conquistou o grande prémio Leopardo de Ouro e o prémio Leopardo de Prata para Melhor Atriz no Festival de Cinema de Locarno, na Suíça, no verão passado. Depois, venceu o Prémio do Júri do Festival de Cinema de Chicago, o grande prémio do Festival de Cinema de La Roche-sur-Yon em França.

Para mim, o grande prémio é dar lugar, voz e esperança a todas elas, da Cova da Moura, do 6 de Maio, de Santa Filomena, da Quinta da Lage e de tantos outros bairros, para que saibam que depois de tanto sofrimento podem batucar a dor e conhecer a liberdade.

*Artigo publicado na Revista Visão de 11 de Novembro de 2019. 

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