Moveram uma pequena montanha

Escrevi a crónica abaixo no final de Maio do ano passado. Desde então, os episódios de discriminação, violência e racismo persistem assustadoramente. Atrás da pequena montanha que moveram, existe uma cordilheira sólida, assente num sistema económico que sobrevive e se reforça através da exploração do ser humano, o capitalismo. E neste sistema, a origem social, a classe social, a cor da pele, a origem geográfica, o sexo e a orientação sexual agravam todas as formas de violência. Avancemos nas pequenas montanhas, mas não percamos nunca a perspectiva de transformar a cordilheira.

“Flávio Jorge Tavares Almada, traumatismo craniano, da face e da coxa esquerda, edema da hemiface esquerda com hematoma periorbital esquerdo com dor na pirâmide nasal, contusão no joelho esquerdo e trauma dentário (fratura de um incisivo), tendo a cura das lesões sido fixada em 10 dias com 10 dias de impossibilidade para o trabalho”.

Cresceu nos bairros da periferia da Cidade da Praia, recebeu aí influências das gentes da Nigéria, do Gana e do Senegal, e de um tio que lhe mostrou como os livros podem ser janelas para o mundo. Veio para Portugal, estudou Sociologia na UBI, mas as dificuldades económicas apressaram o regresso ao Bairro da Cova da Moura onde vivia a sua mãe. Trabalhou na construção civil, construiu edifícios onde sabia que nunca ia entrar. O Paulo, emigrou, não arranja emprego nem lhe dão a nacionalidade, apesar de ter nascido e vivido sempre em Portugal. Celso, trabalha todos os dias para sustentar a família. Miguel, trabalha 11 horas por dia e ainda ajuda o padrasto. Rui, teve um AVC que lhe
imobilizou todo um lado do corpo e não consegue trabalhar. Nenhum tem cadastro.

No dia 5 de fevereiro de 2015, Flávio e outros 4 jovens mediadores do bairro, foram à esquadra para saber de Bruno Lopes, o jovem detido nessa tarde por atirar pedras ao carro patrulha (facto que viria a confirmar-se falso em tribunal). Aqui vocês não entram ouviram dos agentes, que formaram um cordão e dispararam um tiro de shotgun que atingiu Celso Lopes. Levados para o interior da esquadra, foram brutalmente agredidos, pisados, pontapeados no corpo e na cabeça, socados, bastonados enquanto ouviam “Não sabem como odeio a vossa raça. Quero exterminar-vos a todos desta terra, Pretos do caralho, deviam morrer todos!”. Na televisão era noticiado «invasão de esquadra», só que não. Quando saíram estavam irreconhecíveis, as marcas das botas ficaram na cara e no corpo durante dias, outras perduram até hoje. 

Há dias, moradores da Cova da Moura e cidadãos solidários com as vítimas ouviram do lado de fora da sala a leitura do Acórdão: crimes de ofensa à integridade física qualificada, sequestro agravado, tortura e outros tratamentos cruéis, degradantes ou desumanos, falsificação de provas e depoimentos. Resultado: 1 pena de prisão efetiva de ano e meio, 9 absolvições, 7 penas suspensas.

Em Portugal, outros casos de violência racial resultaram em absolvições, uns nem queixa formal conheceram, outros nem chegaram a tribunal. Desta vez, a coragem e a resistência destes 6 jovens e da sua comunidade conquistaram uma sentença importante. Moveram uma pequena montanha. As forças de segurança devem ter todas as condições para cumprir o seu papel, garantir a segurança pública, e tal exige dignificação da profissão, formação adequada e tolerância zero a condutas violentas, racistas e xenófobas. As generalizações são perigosas e os polícias não são todos racistas, e é por isso mesmo que não podem ser admitidas práticas violadoras dos direitos humanos, seja onde for.

Moveram uma pequena montanha. Outras montanhas terão que continuar a mover-se para a erradicação de todas formas de violência e discriminação.

*Publicado na Revista Visão de 30 de Maio de 2019;

** Fotografia de Susan Meiselas, Cova da Moura, 2004.

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