Gervásio, um homem levantado do chão

Cortou todo o Alentejo de bicicleta, e no final da década de 50 chegou a fazer dois mil quilómetros por mês a pedalar. A decisão de mergulhar não foi fácil, as razões sobravam, nascer numa família pobre de trabalhadores rurais era adivinhar miséria, fome, analfabetismo, trabalho de sol a sol nos campos. Com ele não foi diferente. 

António Gervásio era o mais velho de 8 irmãos, não foi à escola, aprendeu a ler com 14 anos quando já conhecia o trabalho no campo, participou em greves por melhores jornas contra o desemprego e a fome, e foi nas praças de jorna que descobriu o seu lugar. Juntou-se ao Partido com 18 anos e foi para a clandestinidade com 25, corria o Verão de 1952, levou a companheira e um filho recém-nascido. 

Foi preso três vezes, em 1947, em 1960 e em 1971. Numa das vezes foi brutalmente espancado com paus durante 14 horas, o corpo desfigurado não cabia na roupa e as marcas perduraram mais de um ano. Na última prisão foi sujeito à tortura do sono durante 18 dias e 18 noites seguidos, 400 horas de desumana violência. Na Prisão de Caxias participou na destemida coletiva fuga no carro blindado de Salazar, foi um dos últimos presos libertados, no Forte de Peniche, três dias depois da revolução, contrariando o desejo do pide que ali o recebeu e lhe disse que dali só sairia já velho e incapaz. Tinha 47 anos. 

A vida do Gervásio confunde-se com a história da conquista das 8 horas de trabalho, em 1962, nos campos do Sul. Como conta, “não foi algo lançado para a rua, ou que saltou de cima de um cabeço”, começou a ser preparada cinco anos antes, teve momentos de avanço e recuo, só ele fez centenas de reuniões para envolver os trabalhadores agrícolas do Alentejo e do Ribatejo na discussão de todos os passos e decisões, o que aliás, explica o êxito da conquista que custou muitas prisões e tortura. Mas a sua coragem e a de tantas mulheres e homens tinha criado um poderoso movimento, mais de 200 mil trabalhadores rurais num terço do território nacional forçariam esse avanço civilizacional, “era a primeira vez na história que os trabalhadores agrícolas saíam de casa com sol e regressavam com sol, tinham deixado de ser bichos da noite”. 

Já em democracia, volta ao Alentejo, foi um dos construtores da Reforma Agrária e como deputado constituinte defendeu e votou a sua consagração na lei fundamental do país, era realidade o sonho “dos trabalhadores que não dispunham de terra nem tinham fome de terra, mas tinham fome de pão porque apenas dispunham da sua força de trabalho, trabalho que frequentemente lhes era negado”. 

Ao Gervásio, às mulheres e homens como ele, devemos a liberdade e a democracia, as 8 horas e outros avanços civilizacionais, não deixemos por isso que as novas gerações desconheçam que o fascismo existiu no nosso país, e que a coragem de muitos o derrubou.

Nestes dias, cruzei-me com um vizinho que chegava a casa, noite avançada e gelada, carregava a bicicleta e a mochila da UBER Eats. Lembrei-me do Gervásio, da sua bicicleta e da luta das 8 horas. A vida é uma bicicleta e nunca paramos de pedalar, até à vitória final.

*Publicado na Revista Visão n.º1402 de 16 de Janeiro. 

Comentários

  1. Era um Camarada cujos olhos sorriam e brilhavam sempre que falava da Reforma Agrária...

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