A bola que não se vê

Era daquelas miúdas que tinha jeito para todas as modalidades desportivas do judo ao hóquei em patins, no futebol tinha um domínio da técnica incrível e uma alegria de jogo contagiante. Foi assim desde que me lembro dela. A Carolina Mendes é uma força da natureza, ultrapassou lesões, jogou em equipas portuguesas, em Espanha, Itália, Rússia, Suécia e é atualmente jogadora do Grindavíkurbær – Góður Bær na Islândia*. Uma lutadora, um exemplo e inspiração para tantas jovens atletas.

Não abriu telejornais nem noticiários nas rádios, não foi capa de jornal nem tema de comentário televisivo, não deu origem a reportagens nem a diretos. A maior parte do País não saberá, ou melhor, não terá sido adequadamente informado, mas no passado 6 de junho no Jamor, o Sporting Clube de Portugal defrontou o Sporting de Braga, no jogo da final feminina da Taça Nacional de Futebol.

O jogo estava empatado a uma bola (com golos de Vanessa Marques para o Braga e de Diana Silva para o Sporting) quando prosseguiu para prolongamento. Ironia do destino, decorria em Manchester um concerto de solidariedade com as vítimas do atentado que a estação pública de televisão decidiu transmitir em simultâneo com o jogo, dividindo o ecrã e retirando o som à competição desportiva. Minutos depois, Ana Capeta aos 105 minutos marcou o golo da vitória para a equipa verde e branca, mas a entrega da taça também não teve direito a direto.

Este episódio, de critérios informativos certamente discutíveis, tem a utilidade de relembrar a desigualdade de tratamento mediático das modalidades desportivas e das equipas femininas, e do tanto que falta percorrer para garantir informação diversa e plural. 
O Relatório de 2015 da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (o último disponível) confirma esta evidência nos quatro canais televisivos: “a presença do subtema futebol continuou a relegar para um plano marginal as restantes modalidades desportivas” e “mantém-se o predomínio dos protagonistas do género masculino (superior a 70 %)”. Das mais de 555 horas de comentário desportivo quantas terão sido sobre outras modalidades ou equipas femininas?

Não me recordo de ter lido nenhuma chamada de capa, mas a atleta Sara Moreira disputou há dias, em Minsk, a Taça da Europa dos 10.000 metros que venceu, assim obtendo a qualificação para os Mundiais. Daqui a alguns dias, trinta e seis anos depois do primeiro jogo oficial da Seleção Nacional de Futebol de Seniores Femininos, a equipa nacional disputará pela primeira vez na história a fase final do Campeonato da Europa, na Holanda. Aguardo com expectativa a cobertura do acontecimento, é longo o caminho para a superação das dificuldades estruturais e da invisibilidade mediática.

As diferenças de tratamento teimam em persistir, num mundo ainda tão marcado pelas discrepâncias de número e condições de participação de mulheres e homens no futebol, bem como no desporto em geral. O direito à prática desportiva pelas raparigas e mulheres em condições de igualdade é uma luta de todos os dias, para a qual contribuíram as pioneiras da seleção nacional de 81. De resto, quando nas redes sociais lemos o Jogo das Raparigas da Associação Mulheres e o Desporto, damo-nos conta do imenso trabalho de milhares de atletas em modalidades tão diversas como a canoagem, o voleibol, o basket, o atletismo, o futsal, o futebol, o andebol, a natação, o surf...

Registo de interesses: joguei futebol, sou convicta defensora do potencial do Desporto Escolar e do seu papel inclusivo. Conheço (e admiro profundamente) tanta gente que dedica a vida ao desporto, num país onde a exclusividade de uma carreira desportiva é uma miragem e regra geral é um esforço árduo para conciliar um trabalho que pague contas com o sonho de praticar uma modalidade num registo profissional. Mas exatamente por isso, pelos resultados, pela dedicação e entrega num registo de quase invisibilidade exige-se informação diversa e plural. Urge não ceder a critérios perversos, unicamente centrados em audiências, e assegurar a cobertura informativa do tanto que se faz neste país. Dos milhares de atletas e técnicos, do sacrifício dos dias longe da família e dos amigos, dos quilómetros percorridos, das dificuldades financeiras dos clubes e dos apoios tão necessários, da valorização das carreiras de atleta e treinador.

Força Carolina e toda a equipa, vocês já ganharam!

*A Carolina Mendes é desde o início da época 2019/20 jogadora do Sporting Clube de Portugal. 

** Publicado na Revista Visão a 6 de Junho de 2017

*** Créditos da foto: UEFA

Comentários

Mensagens populares