À Sofia, ao Francisco e a todos os outros

A Sofia tem 11 anos e está no 5° ano. Na sua escola, cada aluno tem o seu plano individual de trabalho, ela desenvolve os exercícios que definiu com os professores das várias disciplinas. A Matemática é a sua maior dificuldade (ainda mais com o actual programa contestado pela Associação de Professores de Matemática em 2012) mas lá vai seguindo, com um ensino individualizado e com estratégias de apoio entre os alunos. 
Encontrei-a há dias na saída da escola, perguntei-lhe se estava bem e ela acenou com a cabeça. Depois começou a contar-me que está preocupada com a mãe, por enquanto ainda tem trabalho, mas não sabe até quando. A Sofia é uma menina muito sensível e meiga, de olhar triste. Apesar das muitas dificuldades com a matemática gosta de ir à escola, e mesmo não fazendo os mesmos exercícios que os colegas, sente-se bem naquele grupo de crianças onde todos aprendem juntos. 
O Francisco tem 13 anos e muitas dificuldades na leitura e na escrita. Apesar disso, participa em todos os projectos da turma, é muito perspicaz e de uma inteligência instintiva impressionante. A vida não o tem poupado, faltou muitas vezes à escola para tomar conta dos irmãos quando ainda nem idade tinha para tomar conta dele próprio, viu coisas que uma criança não devia ver nunca, e as marcas da violência e da negligência tenta camuflá-las com um sorriso pronto, mas curto.

Quando recentemente ouvi e li opiniões simplistas sobre "retenções" e "passagens automáticas" de alunos lembrei-me deles, e de tantos outros. Qual teria sido a vantagem de castigar estas crianças, retendo-as em grupos de alunos muito mais novos, ou em grupos de alunos com problemas semelhantes? Essa sim é uma solução facilitista, e punitiva, que castiga as crianças responsabilizando-as pelas suas dificuldades. 
Construir tempo e espaço para trabalhar com cada criança não é uma utopia, é uma necessidade, e um direito já agora, ou a Convenção dos Direitos da Criança só serve para ser invocada solenemente em discursos anuais?
A escola não pode ser um coador de gente onde alguns fluem e outros ficam presos na rede. A escola pública é um instrumento de combate à reprodução das desigualdades, não pode (como tem feito deliberadamente nos últimos largos anos) optar por soluções facilitistas de segregação. Todo o processo pedagógico é  influenciado por contextos económicos, culturais, psicossociais, lembro-me de tantas crianças que os únicos livros que tinham em casa eram os manuais escolares, porque tinham escalão A e B.

Uma professora disse-me um dia, temos hoje alunos do século XXI, professores do século XX e uma escola do século XIX, e será impossível ignorar que os estímulos que existem hoje são necessariamente diferentes, mas fazer com que as crianças e jovens gostem de participar nas aulas não é apenas um desafio pedagógico, é um exercício de cidadania. Tantas vezes ouvimo-los dizer que gostam da escola só não gostam das aulas, então tem que existir vida para lá da obcessão com os exames e os rankings internacionais e esse deve ser o desafio mais urgente.

No nosso país existem escolas, professores, alunos, famílias que são heróis todos os dias, que insistem em fazer diferente, e isso é muito inspirador e transformador. Deixa sementes. 

*Fotografia do David Seymour, Nápoles, 1948.

Comentários

Mensagens populares