Do amor incondicional aos filhos dos outros

Roma podia ser apenas a palavra AMOR lida de trás para a frente e o título do filme de Alfonso Cuáron assentaria que nem uma luva. Porque às vezes o amor das famílias é assim, pelo avesso, começa de trás para a frente, cresce dos mais pequenos para os maiores, não flui pela ordem natural da vida, mas pode acabar bem. Pode até reforçar-se quando menos se espera, e nas circunstâncias mais dolorosas, quando tudo parece desabar e nada mais resta que a capacidade de uma família se apoiar e reinventar formas de sobrevivência comum.

Roma é o cenário da obra-prima que o realizador mexicano ofereceu ao mundo. O bairro foi desde o final do século XIX até aos anos 40 a morada da elite aristocrática, mas a revolução mexicana e a pressão demográfica aceleraram dinâmicas sociais, e embora se tivesse mantido como um bairro de classe média, quando foi morada de Cuáron e sua família estava já bastante longe dos tempos áureos do profiriato.

Mas Roma é muito mais que o retrato de uma família e da sua história num bairro e num país em ebulição, e parte da genialidade desta longa metragem está em fazer coincidir personagens e vivências tão díspares de forma incrivelmente imprevisível. 

Cleo, a ama mixteca, é a personagem central do filme, e o realizador que dirigiu a sua primeira película aos 12 anos de idade, não terá escolhido por acaso esta jovem sem qualquer experiência cinematográfica para lhe dar vida. A fotografia, a técnica filmográfica e a sonoplastia enquadram brilhantemente estas personagens femininas em lugares comuns de sofrimento e em momentos de uma incrível humanidade, como naquela cena onde a mãe das crianças chegando tarde a casa, segura na face de Cleo e lhe diz “nós estamos sozinhas, não importa o que eles nos dizem, nós as mulheres estamos sempre sozinhas”. A partilha desse lugar de abandono não apaga diferenças de origem étnica, social e económica entre as personagens, pelo contrário, expõe a consciência sobre a capacidade de superação desse lugar, ainda que com diferentes recursos.

Cuáron filma com intenso detalhe toda a doçura que Cleo dedica às crianças, assim numa espécie de amor incondicional pelos filhos dos outros. A mixteca que terá pouco mais que 16 anos, expressa por vezes uma certa alegria infantil, criando uma lógica de identificação e proximidade com as crianças, apesar da permanente postura de responsabilidade. O carinho dos gestos, a forma como lhes canta canções de embalar, o cuidado com que as trata é imperturbável, e por isso surge tão óbvia a relação de reciprocidade permanente entre ela e as crianças. Aliás, a cena que partilha com Pepe no terraço da casa é de uma serenidade e beleza incrível. 

Igualmente imprevisível é a evolução da personagem da Mãe, que surge numa figura fragilizada e deprimida, mas que gradualmente vai ganhando força e assumindo poder, revelando assertividade nas decisões para responder à degradação das condições materiais da família, à ausência do Pai, à gravidez não planeada da criada. De fraca a forte, quando num momento de grande tensão e perante a tristeza das crianças, as informa que o Pai não voltará a casa, mas obviamente os ama muito e sente a sua falta. Segura as crianças dizendo-lhes que “vão haver muitas mudanças, mas estamos juntos”.

Algumas críticas ao filme referem que Cuáron reproduz sem questionar as relações de poder numa sociedade profundamente estratificada, colocando a indígena no lugar de mártir e não de força. Ao longo das mais de duas horas de filme nunca o senti. Pelo contrário, senti com Cleo a personificação de uma determinação serena, visível no momento em que procura Fermin e o confronta com a paternidade, e sobretudo no momento épico em que entra mar adentro. As várias referências e denúncias de injustiças sociais e violência organizada que vão surgindo no filme, sempre pela voz dos indígenas, contraria também essa visão paternalista do realizador. A retirada de terras aos povos indígenas, como acontece com a mãe de Cleo; a fotografia crua das condições de vida nos pueblos e zonas pobres; a tomada de consciência individual da criada mais velha quando regista que as criadas da cidade passam a achar-se patroas; ou o aproveitamento da miséria para recrutar mercenários, rebate esta crítica. A reconstituição impressiva do massacre de Corpus Christ, onde a 10 de junho de 1971 centenas de estudantes foram barbaramente assassinados por mercenários e paramilitares treinados pelos EUA, e com a precipitação do parto de Cleo, é um evidente sinal de preservação da memória coletiva sobre a brutalidade do acontecimento acumulado com o desespero individual de uma mulher grávida. 

Alfonso Cuáron dedicou o Leão de Ouro, conquistado no último Festival de Veneza, a Libo, a sua ama mixteca. Pepe confessa a Cleo que sonhou ser muito velhinho, mas que ela estava lá, sempre ao seu lado. Será impossível ter noção de quantas Cleos ofereceram humanidade ao mundo, mas continuam a ser muitas, todas aquelas que sem ter tempo para amar os seus, amam incondicionalmente os filhos dos outros.

*Publicado na edição de 23 de Dezembro do Diário de Notícias. 


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