À Cristina, 1 de 2

Ontem entrei no supermercado e uma cliente falava bem alto. Dizia à rapariga da caixa que não podia admitir aquilo, o chefe lhe podia falar assim, nem na frente de todos nem em privado, e se aquilo continuasse devia denunciar à Autoridade das Condições de Trabalho. A rapariga estava visivelmente nervosa e os olhos enchiam-se de lágrimas que não conseguia conter. 

Que tempos estes onde ser tratado com respeito parece uma excentricidade, na lei existem direitos mas na vida nem por isso, e ter coragem para denunciar é já uma vitória. 

Os tempos são duros não há como negar, tantas mulheres e homens que não se sentem protegidos e ainda têm medo de denunciar. Também por isso valerá a pena celebrar a coragem da operária corticeira Cristina Tavares, a quem nestes dias a justiça voltou a dar razão, depois do Tribunal da Relação do Porto confirmar a multa por assédio moral, após recurso apresentado pela empresa.


"À Cristina, guerreira e operária corticeira

Um murro no estômago. Foi neste fim de Verão, embora a violência dos dias imponha à Cristina um Inverno permanente há largos meses. O comunicado da CGTP data de 13 de setembro mas o calvário desta operária corticeira remonta a janeiro de 2017, e ninguém pode ficar indiferente. 

Cristina Tavares tem 47 anos de vida marcados no olhar e no corpo, um filho, e o trabalho é o seu único ganha pão. Durante nove anos ocupou aquele posto de trabalho de montadora-recebedora, na Fernando Couto – Cortiças, Santa Maria da Feira. No início de 2017, a empresa recorreu ao despedimento cirúrgico, vulgo despedimento por extinção do posto de trabalho para a descartar. 

De resto, esta tem sido prática recorrente de muitas empresas para descartarem determinados trabalhadores, regra geral os que têm responsabilidades familiares, doenças profissionais, os que resistem e fazem greve, os que são delegados e dirigentes sindicais.
Cristina contestou judicialmente o despedimento ilegal, venceu o processo e o Tribunal da Relação do Porto determinou a sua reintegração, o pagamento dos seus direitos e da indemnização. 

Desde que regressou a 7 de maio deste ano, a Administração tem usado da brutal violência física do trabalho improdutivo e do terrorismo psicológico. Proibida de utilizar espaços comuns como o wc e o parque de estacionamento, foi obrigada a carregar e descarregar diariamente uma palete com centenas de sacos de 20 kg de rolhas de cortiça, debaixo de temperaturas por vezes superiores a 40 graus que lhe causaram constantes hemorragias nasais, sob um ambiente de repressão, humilhação e assédio chocante. 

O grau de violência é arrepiante e ainda recentemente, após uma concentração de solidariedade com Cristina à porta da fábrica, o seu carro foi vandalizado. 

Depois de três ações inspetivas da ACT esta situação desumana mantém-se, e nem o facto da corticeira Fernando Couto – Cortiças, SA ter sido galardoada pelo IAPMEI (PME Líder em 2014 e PME Excelência em 2015) a inibiu de insistir na violação da lei e de direitos humanos fundamentais. 

Nem esta nem nenhuma empresa está acima da lei e da Constituição, este drama não pode continuar e outros não podem repetir-se. O Governo deve desencadear, reiteradamente, todos os mecanismos inspetivos e punitivos para garantir o respeito pela decisão do Tribunal e pelos direitos desta trabalhadora. 

A Cristina não bastou ter a lei e a justiça do seu lado, faltou a eficácia e celeridade na sua aplicação. Não basta criminalizar o assédio na lei, sem garantir a proteção da vítima na vida. Recentes alterações legislativas sobre assédio no local de trabalho foram importantes mas limitadas, quanto à proteção da vítima e das testemunhas, a inversão do ónus da prova, o reforço das sanções acessórias às empresas que praticam assédio. E não foi por falta de alerta e proposta do PCP, mas antes por opção de PS, PSD e CDS. 

Esta não é apenas uma batalha pessoal da Cristina, é uma batalha de civilização, um combate de tolerância zero a estas práticas desumanas. Que nunca te faltem forças Cristina, seremos muitas e muitos ao teu lado até ao fim!

* Publicado na Visão de 27 de setembro de 2018;

** Fotografia de Guy Le Querrec, Barreiro, 1974.

Comentários

  1. O problema é que cada vez mais as pessoas têm medo. Medo de perder o emprego. E este medo torna-as mais submissas e, logo, mais vulneráveis.
    O capitalismo mata. E começa desde logo a matar a vontade (e o direito) de exercermos os nossos direitos. Se cada trabalhador humilhado tivesse, ao menos, um fio de vontade....

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