Para o Brasil, Aquele Abraço! - Brasil Parte II

Tentar compreender o Brasil a partir dos nossos critérios será sempre um desafio impossível. Seria como tentar compreender o batuque e o pandeiro do samba a partir dos acordes melancólicos do fado. O Brasil é, para a nossa escala, um continente. O quinto maior do mundo em área e o sexto em população; viveu quatro séculos de colonialismo e as suas elites enriqueceram com o saque dos recursos naturais e o comércio de escravos, diga-se tráfico de seres humanos. Tudo isto deixa feridas fundas, tão fundas que perduram até aos dias de hoje sem cicatrizar. 

Sete meses depois do Golpe que a afastou da presidência do Brasil, Dilma Roussef veio a Lisboa. Alertou, de forma surpreendentemente lúcida, para o perigo da ascensão do fascismo e antecipou jogadas que impediriam a candidatura de Lula da Silva. Bola na rede. Nessa mesma noite revelou com absoluta clareza o que motivava o Golpe: os sectores mais reacionários do Brasil não se conformam com medidas progressistas de distribuição da riqueza. As elites agrárias, económicas e financeiras não se conformam que pela primeira vez na história aquelas mulheres que criam os filhos dos outros sem ver os seus crescer tivessem carteira de trabalho; não se conformam em ver jovens, negros e pobres, estudar na universidade, e balbuciavam ofensas como “aeroporto está parecendo rodoviária”, incomodados com a melhoria das condições de vida de vastas camadas da população. Nessa noite Dilma partiu apelando à resistência e à solidariedade, e a vida veio provar essa exigência. 

Nos 13 anos de governos Lula e Dilma, o combate à pobreza teve resultados históricos. Dados da ONU confirmam que entre 2001 e 2012 a pobreza extrema foi reduzida em 75%[1], porque o acesso à alimentação foi promovido através de importantes medidas como o Bolsa Família e o aumento do salário mínimo que quase triplicou. Mesmo assim, o Brasil é campeão mundial na concentração da riqueza: 1% detém quase 30% da riqueza do país, ao mesmo tempo que metade da população vive com o salário mínimo[2]. Alguém acreditará que esta elite abdica pacificamente dos seus privilégios? Várias medidas de justiça social foram implementadas entre 2002 e 2015, sem transformar, contudo, a natureza capitalista do sistema económico brasileiro, dominado pelos sectores agrários e industriais e pelas as multinacionais do agronegócio. Os governos do PT não foram imunes a fenómenos endémicos de corrupção e criminalidade económica e isso deve ser apurado até às últimas consequências, destes e de todos os governos e partidos. Mas não existem erros, distorções ou desvios ideológicos que justifiquem como alternativa o fascismo. Aliás, o ascenso do fascismo é uma resposta das elites à conquista de direitos económicos e sociais e não uma consequência dessa conquista. 

Os sectores mais reacionários e as forças fascistas encontraram, primeiro em Temer e depois em Bolsonaro, os fantoches à medida do seu teatro. Desde o Golpe que a ordem é liquidar direitos sociais, cortar na educação, saúde e previdência, atacar liberdades, direitos e garantias, abdicar da soberania nacional, ajoelhar ao imperialismo, promovendo o medo, a violência e o terror. O assassinato de camponeses do Movimento dos Sem Terra, de ativistas e dirigentes sindicais, de estudantes, de Marielle Franco e outros ativistas políticos é deplorável, e o ambiente em que decorreu esta campanha eleitoral ajudará a explicar, em parte, o resultado de dia 28. O sistema judicial brasileiro ficará para sempre manchado pela cumplicidade e inércia neste contexto de violação de direitos humanos. Seja pela prisão arbitrária de Lula, pela total impunidade de crimes de ódio, pela conivência com fake news, quais mísseis de manipulação, mentira e ódio. 

O fascismo e seu candidato foram branqueados semanas a fio nas televisões e jornais dos grandes meios de comunicação social brasileiros, mas também portugueses, de forma chocante. As redes sociais têm dono, e eles apontaram impunemente estas armas de conteúdos digitais à democracia brasileira, servindo o fascismo e seu candidato. Pela apologia e prática do obscurantismo e do retrocesso, o papel da IURD deve ser desmascarado. 

Todos os democratas acordaram dia 29 com um aperto no peito. O resultado eleitoral de um candidato que idolatra o Coronel Ustra, torturador que nos tempos da ditadura militar sequestrava crianças para assistirem à tortura dos pais, é inquietante. Mas nestes duros dias cada fio de vontade foram dois braços, e cada braço será uma alavanca na resistência. Muitas mulheres e homens uniram forças neste combate, saindo à rua, informando e esclarecendo das ameaças e dos perigos, mas também da força inalienável da participação de todos e cada um na luta pelo direito a ser feliz e a viver sem medo. 

A todos os que apoiaram Haddad e Manuela D'Ávila, Aquele Abraço! Não foi em vão, dessas sementes nascerão cravos vermelhos de felicidade. 

[1] https://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,brasil-reduz-a-pobreza-extrema-em-75-entre-2001-e-2012-diz-fao,1560931; 


*Publicado na edição de Novembro 2018 do jornal d' A Voz do Operário;

** Fotografia de Sebastião Salgado, êxodo rural.

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