Ken Loach foi ao Mini Preço do Calhariz

A Maria cria três filhos menores sozinha, cria literalmente, do verbo criar: “dá existência, gera, educa, origina, inventa”, como se lê no Dicionário Priberam da Língua Portuguesa. E inventa-se a ela e aos dias, todos os dias, para conseguir continuar a criá-los. E já não fala do dinheiro, que não chega pra aquilo onde não pode faltar, fala de se esticar, de conseguir chegar a horas para os deixar e ir buscar à escola, fala do cansaço que a esgota e lhe retira forças, fala da angústia de saber que aqueles horários não lhe permitem tudo o que queria e precisaria. 

Têm 13, 11 e 6 anos, e só ela sabe andar na corda bamba permanente para não lhes faltar. Não aguentava mais e foi saber dos seus direitos ao sindicato, enviou pedido à empresa de um horário até às 18h, que lhe permitisse deixar e ir buscar as crianças. Vai para dois meses, mas a resposta tardou. Face a tamanho capricho desta mãe, vai daí que a empresa lhe atribui o horário com saída entre as 20h e as 21h, e qual quê de cumprir a lei e informar a entidade competente (Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego) do motivo da recusa do horário pedido. As crianças? Mas o que interessam as crianças, no antigamente também se criavam e à base de sopas de cavalo cansado… 

A empresa não cumpriu a lei, não justificou o motivo da recusa do horário pretendido pela trabalhadora, e estoicamente, a Maria apresenta-se no local de trabalho no horário requerido. Como se não lhe bastasse já tanta adrenalina na vida, enfrenta agora pressões para “picar o ponto" à hora que a empresa quer, ouvindo ameaças de desconto de horas de trabalho no salário. A estrutura sindical (CESP) tem intervindo junto da empresa desde o início desta situação, é aliás do que mais fazem, nesta e noutras empresas do setor das grandes superfícies, distribuição e logística, é assegurar que se cumpre a lei em processos de horários para acompanhamento dos filhos menores. 

Li esta denúncia do CESP, sobre a situação desta trabalhadora da loja Mini Preço Dia do Calhariz em Lisboa, um dia depois de ter visto o último filme de Ken Loach, “Sorry we missed you”. Ken Loach insiste em fazer filmes sobre trabalhadores e pobres, essa multidão de gente, que para muitos (aparentemente) não representa qualquer identidade, mas continua a estruturar a sociedade entre os que trabalham porque não têm alternativa à venda da sua força de trabalho, e os que lucram com isso recorrendo a condições de exploração, precariedade e salários de miséria. 

O realizador britânico de 83 anos insiste em fazer filmes sobre os limites deste sistema que tritura pessoas e famílias inteiras. E não há como ignorar, com os incríveis avanços científicos e tecnológicos das últimas décadas, hoje deveríamos estar a discutir e a praticar jornadas de trabalho mais reduzidas, mais tempo para descansar, mais tempo para a vida pessoal e familiar, mais tempo para aquilo que gostamos e nos faz feliz. Mas não. Hoje, cada vez mais trabalhadores têm horários selvagens, têm as suas vidas em permanente intermitência até que caia no telemóvel nova ordem de saída. E não há volta a dar, o capitalismo não quer traduzir os avanços científicos e tecnológicos em melhores condições de trabalho e de vida, quer traduzi-los em mais lucro. No fim, é sempre só isso que conta. 

Os filmes do Ken Loach são consecutivos murros no estômago, desfiguram-nos de tanto chorar, queremos ajudar aquelas pessoas, mas não conseguimos porque aos pobres uma desgraça nunca vem só, são vidas inteiras a sobreviver no limite da saúde física e mental. 

Longa vida a Ken Loach e à sua lúcida capacidade de existir. Esta imensa multidão de gente não são máquinas, são gente que cria gente e merecem muito mais que isto.

* Sorry We Missed You é um filme britânico-francês-belga de 2019, realizado por Ken Loach, escrito por Paul Laverty e produzido por Rebecca O'Brien. Com Kris Hitchen, Debbie Honeywood, Rhys Stone e Katie Proctor.

Trailer: 





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