À Cristina, 2 de 2

A minha bisavó morava numa casa com um pequeno quintal, volta e meia visitada por astutos roedores que degradavam a precária habitação e disputavam comida. E se havia coisa que não abundava era exatamente comida, contrariamente às sete bocas que tinha para alimentar, o que não lhe deixou alternativa à missão de extermínio dos roedores. Várias opções estudadas, optou pelo veneno, achou menos violento, e assim pouco a pouco os roedores haviam de se ficar ali pelo quintal. Nestes dias, por tristes razões, recordei este episódio.

Escrevi aqui, em setembro, sobre a operária corticeira Cristina Tavares, agora, passados cinco meses, sou obrigada a fazê-lo novamente. Breve resumo. Em janeiro de 2017, foi despedida por extinção do posto de trabalho, ilegalmente despedida. O posto de trabalho não foi extinto, continua lá, na fábrica em Santa Maria de Lamas, concelho de Santa Maria da Feira, distrito de Aveiro. Recorreu, o tribunal deu-lhe razão. Reintegrada, foi recebida com trabalhos forçados e improdutivos, repressão e assédio. Denunciou e exigiu ser colocada no seu posto de trabalho. Pela segunda vez, o tribunal deu-lhe razão e condenou a empresa por assédio. Como retaliação, a empresa avança com novo despedimento, agora por “difamação”. Cristina é obrigada a abandonar a Corticeira, deixa de receber salário e enfrenta novo processo de despedimento. Recorre novamente. Na semana passada, pela terceira vez, a empresa é novamente autuada por violação de normas de higiene, saúde e segurança no trabalho.

A Corticeira Fernando Couto – Cortiças, S.A. foi multada três vezes em vários milhares de euros, mas prefere pagar multas e desembolsar milhares de euros em assessoria jurídica do que cumprir a lei, e esta prática é ainda mais escandalosa se recordarmos o galardão PME Líder 2014 e Estatuto PME Excelência 2015, atribuído pelo IAPMEI.

Este processo fica também marcado pelas tímidas palavras do Governo, a ausência do executivo autárquico, o silêncio da associação patronal do setor corticeiro (APCOR). Perante a brutal violência a que esta mulher tem sido sujeita, é insustentável esta postura por parte de quem pode fazer muito mais.

Dois anos, 760 dias, 17 520 horas de tortura psicológica e terrorismo social, é tudo isto que carrega esta alimentadora-recebedora de cortiça, apenas porque não desiste do posto de trabalho.

Três sentenças judiciais e uma queixa-crime no Ministério Público parecem não ser suficientes para parar a empresa. Será possível que a Justiça se arraste tanto tempo para fazer valer os direitos desta mulher? Até quando pode durar o silêncio da associação patronal do setor corticeiro sobre esta violação de direitos humanos? O que é necessário acontecer mais para que o Governo condene veementemente e repudie publicamente a prática bárbara desta empresa?

A Cristina tem tido a coragem que falta a tantas mulheres e homens deste país para denunciar situações semelhantes, mas todos sabemos que este não é caso isolado, antes fosse. Este chocante processo de tortura psicológica e terrorismo social é ilustrativo, infelizmente, de práticas recorrentes em muitas empresas e locais de trabalho neste país. Não esquecemos os trabalhadores da PT/Altice igualmente vítimas de repressão e assédio por não aceitarem o despedimento, ou também tantos trabalhadores diariamente confrontados com ameaças e chantagem, violação de direitos de maternidade e paternidade, entre outros.

Tal como no quintal da minha bisavó, nos locais de trabalho, entre as várias estratégias de extermínio, o ato súbito será a mais eficaz. Por vezes falha, o que pode obrigar a técnicas de desgaste lento, onde muitas vezes o exterminador desvaloriza a resposta de grupo. A Corticeira Fernando Couto – Cortiças, S.A. pensou que teria pela frente uma trabalhadora isolada. Enganou-se, a Cristina é uma guerreira e tem ao seu lado todas as mulheres e todos os homens que neste país reconhecem a justeza da sua luta e a monstruosidade de que tem sido alvo. A Cristina não está sozinha, o exterminador não contava era com isso.

*Publicado a 20 de fevereiro de 2019, na Revista Visão.

** Fotografia de Eduardo Gageiro, Nazaré, 1962. 

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